quinta-feira, 30 de abril de 2015

Competitividade

Samsung e o império do medo*

Martine Bulard

...Continuação

Não almoçar com sindicalista

Também os sindicalistas têm direito à mordaça. Um dos porta-vozes do grupo, Cho Kevin, desmente qualquer tipo de caça às bruxas. Ele nos informou por e-mail (é mais fácil encontrar um ministro ou um deputado do que um representante da Samsung): “Existem sindicatos em muitas de nossas filiais, e o grupo respeita o direito ao trabalho, assim como as normas éticas”. Sindicatos da casa, sim; mas não a Confederação Coreana dos Sindicatos (Korean Confederation of Trade Union, KCTU), cujo ancestral teve um papel decisivo no fim da ditadura nos anos 1980. Supressões, demissões, ameaças, chantagem: a direção não poupa meios, se acreditarmos no estudo realizado pelo professor Cho Don-moon, sociólogo da Universidade Católica da Coreia [8]. Até 2011, apenas um sindicato era autorizado na empresa, e ele devia se registrar junto à administração pública. Assim que a papelada chegava, o funcionário avisava a direção da Samsung, que podia sequestrar o impetrante por diversos dias, tempo durante o qual ela podia criar seu próprio sindicato na usina. A partir de janeiro de 2011, o pluralismo sindical foi reconhecido, mas a KCTU continua sendo o inimigo.

Encontramo-nos com seis membros, com idade entre 30 e 50 anos. Todos trabalham na Samsung, na região de Ulsan, a duas horas e meia de trem-bala a sudeste de Seul. Mas para encontrá-los é preciso dar voltas e mais voltas até um albergue coreano tradicional, rodeado por flores e árvores, na beira de um lago, longe de suas casas, a fim de que eles permaneçam anônimos. O local é mais charmoso do que a vizinhança das fábricas, onde eles produzem baterias de telefones celulares, telas de cristal líquido e aquecedores solares. E principalmente mais discreto: “É muito perigoso encontrar uma jornalista – ainda mais estrangeira”, explicam. Sindicalizados na KCTU, eles vivem em semiclandestinidade.

Todos são catalogados como “MJ”, de moon jae, transcrição fonética em alfabeto ocidental do coreano “problema”. “Em cada setor”, conta um deles, “há pessoas encarregadas de encontrar os MJs, assediá-los, comprá-los, impedir a ‘contaminação’.” Um de seus colegas continua: “Se uma pessoa por acaso bebe uma cerveja com um MJ numa festa, ela é imediatamente convocada pela direção, que pergunta o que ela ouviu e o que disse. Até na cantina é pouco recomendado comer na companhia de um MJ”.

Toque de recolher

Chovem sanções: apenas um desses sindicalistas manteve seu trabalho no grupo. Um foi transferido para um escritório onde se ocupa, sozinho, das obras de caridade da fábrica. Outro foi mandado para um serviço de fornecimento bem supervisionado. Uma pergunta sobre a atividade do quarto provoca risos gerais: “Nada, eu não faço nada, literalmente. Antes, eu era operário; agora, fico em um escritório, sozinho, sem nenhuma função”. Ele ri, mas teve de consultar um psiquiatra. Para seu colega, que acabou de se filiar ao sindicato, a direção propôs um “estágio obrigatório” de diversos meses na... Malásia. Ele recusou; está esperando a sanção. Quanto ao sexto, ele foi demitido há quatro anos. Sem recursos.

Encontramos outros MJs. Em Suwon, a sede da Samsung, na periferia de Seul. Cho Jang-hee, ex-administrador de um restaurante no parque de diversões Everland, teve a audácia de criar com três de seus colegas um sindicato filiado à KCTU. Todas as tentativas precedentes tinham fracassado – alguns envolvidos receberam uma promoção ou dinheiro para pagar os estudos dos filhos, outros cederam às pressões. “De repente, os colegas não têm mais coragem de olhar para você, eles não falam mais com você”, explica Cho. “Existem até ‘sessões de formação’ durante as quais os chefes explicam que somos bandidos que colocam a empresa em perigo. ” Eles foram seguidos 24 horas por dia e filmados. Seus telefones foram grampeados, seus familiares, ameaçados. Mas se mantiveram firmes.

Evidente, sua influência é marginal: onze aderentes “abertos” e 68 clandestinos, entre 10 mil assalariados. Não chegam nem perto de ser eleitos para representar os funcionários nas comissões paritárias inventadas pelo grupo para contornar os sindicatos e compostas metade de pessoas da direção e a outra metade de representantes dos trabalhadores altamente recomendados pela direção. Mas pela primeira vez a KCTU tem uma existência legal, se não reconhecida, dentro da Samsung. Cho pagou caro por isso: foi demitido. Quanto aos dois outros cofundadores, eles foram suspensos por três meses e transferidos para dois restaurantes diferentes, “para isolá-los bem”.

Tanto em Ulsan quanto em Suwon, esses sindicalizados reconhecem que, para eles, trabalhadores em tempo integral, “os salários são corretos”. Por outro lado, os funcionários sem contrato recebem entre 40% e 60% a menos por um trabalho muitas vezes idêntico, não possuem nenhuma proteção, nenhum bônus, e são mandados embora assim que as encomendas diminuem [9]. Sejam funcionários diretos da Samsung ou empregados pelos fornecedores, eles representam segundo as estimativas (as estatísticas oficiais não existem) entre 40% e 50% dos efetivos. Já os que têm mais de 50 anos, incluindo aqueles que ocupam cargos de chefia, são ardentemente convidados a se demitir, pois custam muito caro. Para todos, as condições de trabalho são difíceis, as amplitudes de horário desmedidas, as tensões fortes, os acidentes numerosos. Em janeiro de 2013, um funcionário sem contrato morreu depois de um vazamento de ácido fluorídrico na fábrica de Hwasung, perto de Suwon.

Vista de fora, nada indica o menor perigo nessa unidade. Preocupado com o decoro, Lee Kun-hee construiu com cuidado sua digital city (cidade digital), que se estende por três comunas, Hwasung, Giheung e Onyang. A sábia reunião de grandes cubos de um branco puro, de prédios de vidro elegantes e de um gramado bem cuidado faz pensar num campus universitário. A cada extremidade, dormitórios: os das moças são imponentes, pois as “operadoras” são mais numerosas. Mais distante, o dos rapazes, encarregados da manutenção e do fornecimento. Vindos de todo o país, esses jovens fabricam semicondutores.

Todos os anos, os executivos da Samsung partem à caça. Eles vão ao encontro dos colegas do interior a fim de coletar novas recrutas, e fica a cargo dos orientadores fazer a pré-seleção. Todos dizem o mesmo: há mais demanda que oferta. A Samsung goza de uma bela reputação, e os salários são relativamente altos: o equivalente a 2 mil euros, uma fortuna para quem está começando (o salário mínimo não ultrapassa 600 euros). “Trabalhando na Samsung”, testemunha uma funcionária, “posso ajudar meus pais e preparar meu casamento.”

Mas os sonhos de menina frequentemente se evaporam nas salas brancas de produção. Visto de fora, tudo parece higienizado com suas “operadoras” com aparência de astronautas, vestidas de branco da cabeça aos pés, apenas com os olhos de fora. Imaginamos que são locais altamente seguros. No entanto, esse cenário futurista dissimula práticas medievais.

É preciso trabalhar ao menos doze horas por dia; participar das atividades de caridade a fim de desenvolver o espírito de solidariedade, é o que diz a administração; depois, eventualmente, voltar ao trabalho antes de dormir. Seis dias por semana. No sétimo, as trabalhadoras estão tão cansadas que dormem lá mesmo e raramente visitam a família. “Levantamo-nos na Samsung, comemos na Samsung, trabalhamos na Samsung, nos divertimos na Samsung, dormimos na Samsung”, resume Kab-soo, feliz de ter saído depois de juntar um pequeno pé de meia e encontrado outro emprego um pouco menos duro.

Claro, essas jovens têm o direito de sair à noite. “Não estamos na China”, replica, um pouco ofendido, um ex-executivo do grupo. No entanto, ele reconhece, isso não é muito bem-visto. E se, por descuido, elas voltam depois do toque de recolher (meia-noite), recebem um “cartão vermelho” que só será apagado quando elas tiverem participado devidamente das atividades de caridade da casa.

O cansaço é tamanho que as indisciplinas são raras. No entanto, encapuzadas em sua fantasia de bunny, as trabalhadoras resistem a essa robotização. Proibidas de usar maquiagem, elas colocam cílios postiços. Cobertas até os olhos pelo capuz regulamentar, elas encontram maneiras elegantes de usá-lo, conta Lee Kyung-hong, jovem cineasta documentarista que as filmou durante três anos... [10] depois que saíram da empresa, pois são totalmente proibidas de falar a respeito enquanto estão empregadas.

São suas únicas fantasias. “Trabalhamos com medo”, lembra Kab-soo. Medo de errar. Medo de não conseguir. Medo de ficar doente. A fábrica de semicondutores necessita de grandes quantidades de produtos químicos, gases extremamente perigosos, campos eletromagnéticos. As operárias devem mergulhar suas placas em diversos banhos com grande rapidez, não se enganar, verificar...

Violações da segurança no trabalho

No papel, as normas de segurança existem. Mas, na unidade de Hwasung, já houve dois vazamentos de gás entre janeiro e maio de 2013. Os sistemas de ventilação não funcionam sempre. Frequentemente as próprias operadoras abrem as válvulas de radioatividade para irem mais rápido e cumprirem sua missão. Sem serem pagas por unidade, elas se sentem responsáveis pelo resultado comum.

Nesse ritmo, elas não aguentam mais do que quatro ou cinco anos. Depois, encontram outro emprego ou voltam para a casa dos pais e se casam – apenas 53,1% das mulheres trabalham [11]. Algumas acabam morrendo. Em 2007, a jovem Hwang Yumi, na época com 22 anos, faleceu depois de quatro anos de trabalho na unidade de Giheung. Seu pai, Hwang Sang-gi, taxista em Dokcho, a duas horas e meia de carro de Seul, se lembra de cada instante do câncer que a devorou por longos meses. Ele se tornou um símbolo. Ainda que, segundo sua expressão, “não fale tão bem quanto os burocratas da Samsung” e mesmo recebendo ameaças e ofertas financeiras para se calar, ele nunca abandonou a luta. Ele quer que o câncer de sua filha seja reconhecido como uma doença profissional não apenas pela administração – o que já aconteceu –, mas também pela Samsung, que continua negando. No caso de Yumi, assim como no de todos que ainda estão morrendo.

A primeira que lhe deu ouvidos foi a advogada Lee Jong-ran. Ela não se cala sobre os danos provocados por esse concentrado de substâncias perigosas. “Os fabricantes dizem que não há nada a temer, mas nenhum quer dar a lista exata dos produtos utilizados, em nome do ‘segredo de fabricação’. E os jovens morrem em segredo” Com o doutor Kong Jeong-ok e a associação Supporter for the Health and Rights of People in the Semiconductor Industry (Sharps), ela recenseou 154 doentes sofrendo de diversas condições (leucemia, câncer de mama, esclerose múltipla...) desde março de 2012, dos quais 137 são ex-funcionários da Samsung. Para muitos especialistas do grupo, essas doenças profissionais são um segredo conhecido por todos. Foram necessários, no entanto, os vazamentos de gás tóxico em Hwasung, a dez minutos das residências de luxo no entorno de Suwon, para que alguns começassem a se preocupar e para que a direção prometesse tomar providências...

Mas quando, depois de meses e meses de procedimentos para que fosse examinado um caso preciso, a agência pública de indenização designada pelas autoridades finalmente entrou em funcionamento, ela convocou um médico... da Samsung[12].

BOX:

Ficha de Identidade

Valores de negócios: R$ 537 bilhões.

Lucro líquido: R$ 40 bilhões.

Funcionários: 369 mil pessoas, dos quais 40 mil pesquisadores.

Parte das vendas mundiais de celulares: 29% (22% para Apple).

Principais filiais: Samsung Electronics (telefones celulares, semicondutores, telas de LCD, aquecedores solares...), Samsung Heavy Industries (construção naval, plataformas petroleiras), Samsung Techwin (armamento), Samsung Life Insurance (seguros), Everland (parques de diversão), The Shilla Hotels and Resorts, Samsung Medical Center, Samsung Economic Research Institute.

Principais países de atuação fora da Coreia do Sul: China (montagem de telefones celulares), Malásia, Vietnã.

Fontes: Relatório oficial da Samsung, IDC Worldwide Mobile Tracker 2012.



[8] Cho Don-moon, “A estratégia antissindical da Samsung.História da luta dos trabalhadores pela criação de um sindicato”, estudo (em coreano), 2012.
[9] Cf. Jean-Marie Pernot, “Corée du Sud: des luttes syndicales pour la démocratie” [Coreia do Sul: lutas sindicais pela democracia], Chronique Internationale de L’Ires, n.135, Paris, mar. 2012.
[10] Lee Kyung-hong, L’empire de la honte [O império da vergonha], Purn Production, Seul, 2013.
[11] A média para os países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) é de 56,7%.
[12] “South Korean government rejects Samsung victim’s workers compensation based on Samsung doctor’s opinion” [Governo sul-coreano rejeita compensação a trabalhadores vitimados da Samsung baseado na opinião de médico da Samsung], Sharps, 31 maio 2013.

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