quinta-feira, 23 de abril de 2015

Competitividade

Samsung e o império do medo*


Martine Bulard

Impossível não percebê-la, mesmo no meio dessa floresta de prédios de vidro nos formatos mais mirabolantes – aqui, a originalidade é uma marca de distinção. A torre Samsung reina em pleno coração de Gangnam, um dos distritos mais chamativos de Seul, com suas avenidas gigantescas, seus carros de luxo e seus jovens descolados, que ficaram mundialmente conhecidos graças ao cantor Psy, no seu clipe Gangnam style. A Samsung Electronics apresenta ali, em três andares, suas invenções mais espetaculares: telas gigantes nas quais nos transformamos em jogadores de golfe ou campeões de beisebol; televisores 3-D; geladeiras com laterais e portas transparentes e dotadas de um sistema que pode propor receitas com base em seu conteúdo; espelhos com captadores que indicam nosso ritmo cardíaco, nossa temperatura... Sem esquecer, num lugar de destaque, a última jóia do grupo: o smartphone Galaxy 4, lançado no mundo inteiro.

Essa é a face luminosa da Samsung. Neste fim de tarde de maio, dezenas de adolescentes se encontram aqui, já que a Universidade de Seul se situa a alguns quarteirões. Eles vão de um estande a outro, surpreendem-se diante das proezas, desafiam-se, interpelam-se. Todos com quem conversamos garantem que trabalhar na Samsung seria “o sonho”.

Uma observação que vamos ouvir com frequência. Pois não foi a Samsung que engoliu o peão do colosso norte-americano Apple e do japonês Sony? Não foi “o gigante do século XXI nas tecnologias mais avançadas”, como disse um jovem pesquisador recentemente empregado na Samsung Design, “templo da inovação? E a maior torre do mundo em Dubai? E a central nuclear de Abu Dhabi?”, pergunta meu jovem interlocutor, com um toque de ironia, pois a França perdeu essa concorrência. Samsung, Samsung de novo, sempre a Samsung...

O grupo estende seus tentáculos dos terrenos navais aos nucleares, da indústria pesada à construção imobiliária, dos parques de diversão aos armamentos, do eletrônico ao grande varejo, e até mesmo às padarias de bairro, sem esquecer o setor dos seguros e ainda os institutos de pesquisa. Ele é o que se chama na Coreia do Sul de chaebol – um conglomerado de empresas reunido em torno de uma companhia central –, sem equivalente no mundo [1].

“Na Coreia do Sul”, precisa Park Je-song, pesquisador no Korean Labor Institute (KLI), “você nasce numa maternidade que pertence a um chaebol, vai para uma escola chaebol, recebe um salário chaebol– pois a quase totalidade das pequenas e médias empresas dependem deles –, vive em um apartamento chaebol, tem um cartão de crédito chaebole até mesmo seus lazeres e suas compras serão garantidos por um chaebol.” Ele poderia acrescentar: “você se elege graças a um chaebol”, já que esses mastodontes financiam indiferentemente a direita e a esquerda.

Existem uns trinta deles no país, entre os quais Hyundai, Lucky Goldstar (LG) e Sunkyung Group (SK), cada um propriedade de uma grande família tradicional. O mais poderoso é a Samsung, que opera nas novas tecnologias e cuida de sua imagem – o grupo gastou 9 bilhões de euros em marketing em 2012[2] – , mesmo que a saga familiar, com processos espetaculares, disputas fratricidas, corrupção e gastos suntuosos, faça o seriado norte-americano Dallas parecer um folhetim água com açúcar.

Sua história simboliza a evolução da República da Coreia, que passou de um status de país em desenvolvimento nos anos 1960 – atrás da Coreia do Norte, então mais industrializada – para 15ª economia mundial. O criador do grupo, Lee Byung-chul (1910-1987), começou de baixo, com um pequeno comércio que tinha como emblema três estrelas – samsung, em coreano. A lenda coloca a tônica em sua sensibilidade para o comércio, que lhe permitiu focar os bens de grande consumo (televisores, refrigeradores), depois os eletrônicos, ganhando assim seus títulos de nobreza – e enchendo seus caixas – na Coreia e no mercado ocidental. Ele legou sua fortuna a seus filhos, praticamente sem pagar impostos, e designou um deles, Kun-hee, para lhe suceder.

Fogueira de celulares

Este último desenvolveu o grupo ao ponto de alçá-lo ao primeiro lugar nas vendas de semicondutores (ele fornece para a Apple), de smartphones, de telas planas, de televisores, e ficar entre os primeiros em engenharia e química. O grupo se situa no vigésimo lugar mundial na lista da Forbes [3], apresentando um valor de negócios equivalente a um quinto do PIB da Coreia do Sul. Com uma riqueza pessoal avaliada em US$ 13 bilhões, Lee Kun-hee, 69ª fortuna mundial, é o homem mais rico do país.

A lenda omite o detalhe de que Lee Byung-chul iniciou seus negócios, em 1938, com o aval do ocupante japonês. Ela também não conta que o grupo se desenvolveu com a ajuda em dinheiro líquido do ditador Park Cheung-hee, que trouxe terrenos, financiamentos, impostos reduzidos e normas específicas para proteger o mercado interno. Puro produto da ditadura, a Samsung conserva belos traços desta.

Com 71 anos, o atual patrão “exerce um poder absoluto tanto sobre as orientações do grupo quanto sobre o pessoal”, garante Park Je-song, “mesmo detendo apenas uma ínfima parte do capital”: menos de 3%. Quando ele fala, todos obedecem sem hesitar. Em 1993, ele soltou para os funcionários: “Vocês devem mudar tudo, menos suas mulheres”. De um dia para o outro, produtos, métodos e administrações foram alterados. Essa famosa “reatividade ao mercado” é o sucesso do grupo e a lenda sobre seu chefe.

Dois anos depois, constatando a má qualidade dos telefones, Lee Kun-hee organizou uma gigantesca fogueira com 150 mil celulares, que viraram cinza diante dos trabalhadores perplexos. A imagem foi retransmitida em todas as fábricas, para mostrar que um trabalho malfeito não vale mais do que um monte de cinzas. O “defeito zero” se tornou a norma a ser respeitada, e o sentimento de culpa dos trabalhadores, um dogma.

Advogado renomado, Kim Yong-cheol trabalhou na secretaria geral da corporação, o que há de mais elevado, também chamado de Grupo Central para a Reforma (Reformation Headquarter Group). Ele conta que durante as reuniões com o grande chefe, que podem durar mais de seis horas, nenhum funcionário ousa beber um copo de água, por medo de precisar ir ao banheiro: Lee não suportaria. Ninguém pode falar sem sua autorização. Ousar emitir a menor dúvida não passa pela cabeça de ninguém. “É como um ditador. Ele ordena, nós executamos.”

Também para os fornecedores, não há outro caminho a não ser a submissão. Exímio conhecedor da Coreia do Sul, um dirigente francês de uma empresa do setor muito valorizado das instalações urbanas de luxo, que preferiu permanecer anônimo, confiou: “Para trabalhar aqui, é preciso ser nomeado. Não existe licitação ou concorrência. Tudo se baseia na confiança. Se a relação funciona, você deve ser inteiramente devotado ao grupo, obedecer completamente. A vantagem é que você pode inovar, mas sob sua proteção”. É impossível trabalhar para outro chaebol ou recusar uma encomenda. “São relações feudais”, acaba confessando. Outros fornecedores com menos prestígio podem ver seu ganho reduzido de maneira autoritária do dia para a noite ou serem cortados da lista.

O advogado Kim Yong-cheol viveu o sistema Samsung de dentro. Durante “sete anos e um mês”, precisa ele, colocou seu talento a serviço do grande homem e de suas práticas mais ou menos lícitas: dupla contabilidade, caixa dois para comprar jornalistas e políticos, contas secretas para uso pessoal, entre elas a da senhora Lee, grande amante da arte contemporânea. “Fiquei até o momento em que descobri que havia uma conta bancária em meu nome creditada com diversas dezenas de milhões de wons.”[4]

Ele pediu demissão em 2005. Dois anos depois, uma comissão de investigação foi iniciada. Lee Kun-hee foi condenado a três anos de prisão com liberdade condicional por fraude fiscal e abuso de confiança... antes de ser anistiado pelo presidente da República da época, Lee Myung-bak, ele mesmo antigo proprietário de uma filial da Hyundai. A atual presidente Geun-hye fez dele um de seus convidados de honra durante sua viagem aos Estados Unidos, em maio de 2013.

Foi demais para Kim Yong-cheol. Em 2010, ele escreveu com acidez e publicou Pensar Samsung,[5] em que detalha os abusos da família e a corrupção até os mais altos escalões do Estado: “Eu devia dar a prova de que não estava mentindo”. Nenhum dos três grandes jornais, Chosun,Joongang e Donga –ou Chojoodong, como nomeiam aqui esta imprensa de conveniência –, aceitou fazer publicidade do livro. Ninguém fez uma crítica. Todos estão ligados à Samsung pela publicidade, pelos envelopes espontaneamente depositados para os jornalistas ou por relações íntimas com a família. Apenas o Hankyoreh quebrou a lei do silêncio, o que acarretou no fim dos anúncios publicitários do grupo.

No entanto, as redes sociais fizeram que o livro fosse conhecido e se vendessem 200 mil exemplares. Belo sucesso nas livrarias, mas o advogado continua sem emprego. Ele teve de voltar para sua cidade natal, Gwangju, único lugar onde conseguiu encontrar um trabalho. Ele lamenta apenas uma coisa: “O debate público não aconteceu. A Samsung qualificou meu livro de ‘pura ficção’”. E o jogo continuou.

Mesma constatação do cineasta Im Sang-soo. Com seu filme L’ivresse de l’argent [A embriaguez do dinheiro],de 2012, ele escolheu desde o começo a ficção [6]. Im descreveu com maestria o comportamento dos chaebols: a corrupção, a arrogância, o desprezo pelos funcionários, as disputas familiares e até o assassinato. “Os chaebols transformam as pessoas em escravas. Eu devia desmontar seus mecanismos”, explica no escritório da sucursal coreana do Le Monde Diplomatique[7]. No entanto, “o filme não foi um sucesso”. Silêncio midiático e recusa de difusão por parte das grandes salas de cinema. Para ele, “o mais decepcionante é que o filme nem sequer interessou à esquerda, pois ela não ousa atacar essa fortaleza. Ainda assim, existem duas dinastias na península: a Coreia do Norte com os Kim e a Coreia do Sul com os Lee”.

A imagem não é tão exagerada quando vemos a sorte destinada ao deputado do Novo Partido Progressista Roh Hoe-chan, que perdeu seu mandato em fevereiro de 2013 por ter tornado pública uma lista de personalidades corrompidas pela Samsung. Não qualquer lista: a que foi estabelecida pelos serviços secretos, que, por razões obscuras, tinham registrado conversas entre o patrão do grupo e o do jornal Joongang. Fala-se muito de dinheiro distribuído para muita gente importante: o vice-ministro da Justiça, um ou dois procuradores, diversos jornalistas, alguns candidatos às eleições.

Quando o caso começou a vazar, Roh reclamou e obteve uma comissão de investigação parlamentar que se apressou para abafar o escândalo. Apenas o vice-ministro da Justiça pediu demissão. Confiante em sua imunidade parlamentar, o deputado revelou essa lista durante uma coletiva de imprensa e, não tendo nenhuma ilusão a respeito das consequências, disponibilizou a lista em seu site. Porém, segundo a Corte Suprema, a imunidade termina... onde a internet começa. “Uma farsa”, comenta Roh. “Fui condenado, mas nenhum procurador foi investigado. Basta dizer que o filho do responsável do tribunal encarregado da investigação é funcionário da... Samsung. A Corte Suprema quis fazer de mim um exemplo. É inacreditável a quantidade de telefonemas de ‘amigos’ que recebi, querendo me dissuadir de levar adiante minha luta”. Sai de cena o deputado obstinado.



[1] Ler Laurent Carroué, “Les travailleurs coréens à l’assaut du dragon” [Os trabalhadores coreanos no que do dragão], e Jacques Decornoy, “Délicate fin de guerre dans la péninsule de Corée” [Delicado fim de guerra na Península da Coreia], Le Monde Diplomatique, respectivamente fev. 1997 e nov. 1994.
[2] Benjamin Ferran, “Samsung a dépensé 9 milliards en marketing” [A Samsung gastou 9 bilhões em marketing], Le Figaro, Paris, 14 mar. 2013.
[3] “Global 2000 companies”, Forbes, Nova York, maio 2013. Disponível em:.
[4] 1.000 wons representam cerca de R$ 1,90.
[5] Apenas em coreano.
[6] Disponível em Wild Side Video, Paris.
[7] Ler a entrevista no site.

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